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Sistemas compostos

Qual é a probabilidade de, lançando-se um dado, obter-se o número 3? Todo o mundo sabe que é 1/6. Qual é a probabilidade de, lançando-se o mesmo dado duas vezes, obter-se duas vezes o número 3? Como são eventos independentes, a probabilidade é o produto, 1/36, portanto. Considere agora o seguinte problema: lança-se o dado uma primeira vez, obtendo-se $n_{1}$. Qual é a probabilidade de que, num segundo arremesso, a leitura, $n_{2}$, seja maior do que ${n_{1}}$? Ou seja, qual é a probabilidade de, arremessando-se um dado duas vezes, obter-se o par ($n_{1}, n_{2}$), com $n_{2}>n_{1}$? Agora não se trata de eventos independentes, e a probabilidade não é um simples produto. Num sistema formado por duas partículas, dizemos que elas são independentes se a probabilidade de uma estar em uma certo elemento de volume for independente da posição da outra. Neste caso, cada partícula possui a sua própria função de onda. Sejam $\psi_{1}(\vec{r}_{1})$ e $\psi_{2}(\vec{r}_{2})$ essas funções de onda. Então a função de onda do sistema é, simplesmente,
\begin{displaymath}
\psi(\vec{r}_{1},\vec{r}_{2})=\psi_{1}(\vec{r}_{1})\psi_{2}(\vec{r}_{2})
\end{displaymath} (703)

De fato, desta forma a probabilidade de a partícula $1$ estar entre $\vec{r}_{1}$ e $\vec{r}_{1}+ d^3\vec{r}_{1}$ e da partícula $2$ estar entre $\vec{r}_{2}$ e $\vec{r}_{2}+d^3\vec{r}_{2}$ é dada por
\begin{displaymath}
\vert\psi(\vec{r}_{1},\vec{r}_{2})\vert^2 d^3\vec{r}_{1} d^...
...rt\psi_{2}(\vec{r}_{2})\vert^2 d^3\vec{r}_{1}
d^3\vec{r}_{2}
\end{displaymath} (704)

e a probabilidade do evento composto (partícula $1$ aqui e partícula $2$ ali) é o produto das probabilidades dos eventos individuais, o que caracteriza, na linguagem das probabilidades, a independência dos eventos.

Se as partículas interagem, essas probabilidades não são mais independentes, e a função de onda do sistema composto não é mais o produto das funções de onda dos sistemas elementares.

Sejam

\begin{displaymath}
\psi_{n}(\vec{r}_{1}), \;\;n=1,2\ldots
\end{displaymath} (705)

funções que formam uma base do espaço $E_{1}$ de estados da partícula $1$, e
\begin{displaymath}
\phi_{n}(\vec{r}_{2}), \;\;n=1,2\ldots
\end{displaymath} (706)

funções que formam uma base do espaço $E_{2}$ de estados da partícula $2$. Consideremos o conjunto dos produtos
\begin{displaymath}
\psi_{n}(\vec{r}_{1})\phi_{m}(\vec{r}_{2})
\end{displaymath} (707)

para todos os valores possíveis de $n$ e $m$. O conjunto de todas as combinações lineares, com coeficientes complexos, desses produtos, é um espaço vetorial30. Os elementos desse espaço vetorial são, então, expressões da forma
\begin{displaymath}
\Psi(\vec{r}_{1},\vec{r}_{2})= A
\psi_{1}(\vec{r}_{1})\phi...
...ec{r}_{2}) + B\psi_{2}(\vec{r}_{1})
\phi_{3}(\vec{r}_{2})\;,
\end{displaymath} (708)

por exemplo. Mais geralmente,
\begin{displaymath}
\Psi(\vec{r}_{1},\vec{r}_{2})=\sum_{n}\sum_{m}A_{nm}\psi_{n}(\vec{r}_{1})
\phi_{m}(\vec{r}_{2})
\end{displaymath} (709)

onde os $A_{nm}$ são números complexos.

O produto escalar neste espaço é definido assim: para elementos da base,

\begin{displaymath}
\left(\psi_{n}(\vec{r}_{1})\phi_{m}(\vec{r}_{2}),\psi_{n^{\...
...t(\phi_{m}(\vec{r}_{2}),\phi_{m^{\prime}}(\vec{r}_{2})\right)
\end{displaymath} (710)

A extensão a um elemento geral é feita usando a bilinearidade do produto escalar, isto é,
$\displaystyle (a+b,c)= (a,c)+(b,c)$     (711)
$\displaystyle (a, b+c)=(a,b)+(a,c)$     (712)

Desta maneira,
\begin{displaymath}
\left(\Psi(\vec{r}_{1},\vec{r}_{2}),
\Psi^{\prime}(\vec{r}...
...t(\phi_{m}(\vec{r}_{2}),\phi_{m^{\prime}}(\vec{r}_{2})\right)
\end{displaymath} (713)

onde
\begin{displaymath}
\left(\psi_{n}(\vec{r}_{1}),\psi_{n^{\prime}}(\vec{r}_{1})\...
...c{r}_{1}\psi_{n}(\vec{r}_{1})^*\psi_{n^{\prime}}(\vec{r}_{1})
\end{displaymath} (714)

e assim por diante.

Os mesmos resultados se aplicam no caso de se ter, em lugar de duas ou mais partículas, dois ou mais conjuntos de variáveis independentes. Por exemplo, uma partícula livre no espaço tridimensional, descrita por coordenadas cartesianas. As coordenadas $x$, $y$ e $z$ são independentes, e a função de onda da partícula é escrita, num estado de momento definido,

\begin{displaymath}
\psi(x,y,z)=e^{i(k_x x+k_y y+k_z z)}=e^{ik_x x}e^{ik_y y}e^{ik_z z}\;.
\end{displaymath} (715)

Outro caso semelhante é o do spin. Na mecânica quântica não-relativística (e na ausência de campos magnéticos) as coordenadas espaciais e as variáveis de spin são independentes: a probabilidade de um elétron estar em uma determinada posição e ter, por exemplo, componente $z$ do spin igual a +1/2, é o produto das duas probabilidades. A função de onda de um elétron é então o produto
\begin{displaymath}
\psi(\vec{r})\chi_{\sigma}
\end{displaymath} (716)

onde $\chi_{\sigma}$ é uma das duas matrizes coluna

\begin{displaymath}
\left(\begin{array}{c}
1\\
0 \end{array}\right)\;\;ou\;\;
\left(\begin{array}{c}
0\\
1 \end{array}\right)
\end{displaymath}

e $\psi(\vec{r})$ é a função de onda espacial.

Se o hamiltoniano de um sistema for constituído de um termo que depende das coordenadas espaciais e outro que depende das variáveis de spin, por exemplo

\begin{displaymath}
\hat{H}=-\frac{\hbar^2}{2m}\vec{\nabla^2}+ \frac{e\hbar}{2mc}\sigma_z B
\end{displaymath} (717)

com $B$ constante, o elemento de matriz de $\hat{H}$ entre dois estados do tipo que aparece na eq.(717), é
$\displaystyle (\psi_{1}(\vec{r})\chi_{+},\hat{H} \psi_{2}(\vec{r})\chi_{-})$ $\textstyle =$ $\displaystyle \chi_{+}^{\dagger}\left[\int
d^3\vec{r}\psi_{1}^*(\vec{r})\left(-\frac{\hbar^2}{2m}\vec{\nabla^2}\right)\psi_{2}(\vec{r})
\right]\chi_{-}$  
  $\textstyle +$ $\displaystyle \frac{e\hbar}{2mc}B\int
d^3\vec{r}\psi_1^*(\vec{r})\psi_2(\vec{r})\left[\chi_{+}^{\dagger}\sigma_z\chi_{-}\right]$  
  $\textstyle =$ $\displaystyle \left[\chi_{+}^{\dagger}\chi_{-}\right]\left[\int
d^3\vec{r}\psi_...
...vec{r})\left(-\frac{\hbar^2}{2m}\vec{\nabla^2}\right)\psi_{2}(\vec{r})
\right]+$  
  $\textstyle +$ $\displaystyle \left[\chi_{+}^{\dagger}\sigma_z\chi_{-}\right]\left[\frac{e\hbar}{2mc}B\int
d^3\vec{r}\psi_1^*(\vec{r})\psi_2(\vec{r})\right]$ (718)

A extensão deste formalismo para um número arbitrário de partículas é óbvio, e fica ao encargo do leitor.

Como um exemplo final, vamos examinar de novo o átomo de hidrogênio, mas sob um aspecto mais realista: a interação de uma partícula de massa $m_2$ e carga +$e$, o próton, com um elétron de massa $m_1$ e carga -$e$. O nosso tratamento anterior deste mesmo problema considerava a massa do proton (que é cerca de 2000 vezes maior que a do elétron) como infinita, desprezando, assim, a reação do elétron sobre o proton. Uma descrição mais acurada do problema, então, considera um sistema de duas partículas ligadas por um potencial coulombiano. Sejam $\vec{r}_{1}$ e $\vec{r}_{2}$ as posições do elétron e do próton, respectivamente. O potencial coulombiano será da forma $V(\vert\vec{r}_{1}-\vec{r}_{2}\vert)$, e a equação de Schrödinger será

\begin{displaymath}
\left(-\frac{\hbar^2}{2m_{1}}\vec{\nabla}_{\vec{r}_{1}}^{2...
...)\psi(\vec{r}_{1},\vec{r}_{2})=E\psi(\vec{r}_{1},\vec{r}_{2})
\end{displaymath} (719)

Introduzimos as novas variáveis
$\displaystyle \vec{r}$ $\textstyle =$ $\displaystyle \vec{r}_{1}-\vec{r}_{2}$ (720)
$\displaystyle \vec{R}$ $\textstyle =$ $\displaystyle \frac{m_1\vec{r}_{1}+m_2 \vec{r}_{2}}{m_1+m_2}$ (721)

sendo as transformações inversas dadas por
$\displaystyle \vec{r}_{1}$ $\textstyle =$ $\displaystyle \frac{m_2}{M}\vec{r}+\vec{R}$ (722)
$\displaystyle \vec{r}_{2}$ $\textstyle =$ $\displaystyle -\frac{m_1}{M}\vec{r} + \vec{R}$ (723)

com $M=m_1 + m_2$.

Reconhecemos $\vec{R}$ como a posição do centro-de-massa, na mecânica clássica. A outra variável, $\vec{r}$, é, obviamente, a posição do elétro em relação ao próton. Na mecânica clássica sabemos que essas variáveis são independentes: enquanto o movimento relativo pode complicar-se à vontade, o centro-de-massa segue serenamente seu movimento retilíneo e uniforme. Isto nos sugere, na mecânica quântica, procurar soluções da equação de Schrödinger (720) que sejam produtos de uma função de $\vec{r}$ por uma função de $\vec{R}$. Mas, primeiro, vamos escrever (720) em termos dessas novas variáveis. Após um cálculo não muito complicado, descrito abaixo em letras mais miúdas, obtemos, para (720),

\begin{displaymath}
-\frac{\hbar^2}{2\mu}\vec{\nabla}_{\vec{r}}^2\psi(\vec{r},...
...rt\vec{r}\vert)\psi(\vec{r},\vec{R})=
E\psi(\vec{r},\vec{R})
\end{displaymath} (724)

Aqui aparece a nova variável $\mu$, a massa reduzida, definida por

\begin{displaymath}
\frac{1}{\mu}=\frac{1}{m_1}+\frac{1}{m_2}\;.
\end{displaymath}

Procuremos agora soluções da forma
\begin{displaymath}
\psi(\vec{r},\vec{R})=\phi(\vec{r})\chi(\vec{R})\;.
\end{displaymath} (725)

Inserindo o segundo membro de (726) em (725) obtemos
\begin{displaymath}
\chi(\vec{R})\left(-\frac{\hbar^2}{2\mu}\vec{\nabla}_{\vec{...
...V(\vert\vec{r}\vert)\phi(\vec{r})=E\phi(\vec{r})\chi(\vec{R})
\end{displaymath} (726)

que pode ser reescrita assim:
\begin{displaymath}
-\frac{\hbar^2}{2\mu}\frac{1}{\phi(\vec{r})}\vec{\nabla}^2_...
...}\frac{1}{\chi(\vec{R})}\vec{\nabla}^2_{\vec{R}}\chi(\vec{R})
\end{displaymath} (727)

O segundo membro não depende de $\vec{r}$, e é igual ao primeiro membro, que não depende de $\vec{R}$. Logo, o segundo membro não depende nem de $\vec{r}$ nem de $\vec{R}$, ou seja, é constante. O primeiro membro, por consegüinte, é também constante. Logo,
\begin{displaymath}
-\frac{\hbar^2}{2M}\frac{1}{\chi(\vec{R})}\vec{\nabla}_{\vec{R}}^2\chi(\vec{R})=-K
\end{displaymath} (728)

com $K$ constante. Isto é a mesma coisa que
\begin{displaymath}
\vec{\nabla}_{\vec{R}}^2\chi(\vec{R})=-\frac{2M}{\hbar^2}K\chi(\vec{R})=-k^2\chi(\vec{R})
\end{displaymath} (729)

onde pusemos $k^2=\frac{2M}{\hbar^2}K$. Isto é permitido, com $k$ real, porque (730) pode ser escrita
\begin{displaymath}
\frac{\vec{P}^2}{2M}\chi(\vec{R})=K\chi(\vec{R})
\end{displaymath} (730)

com $\vec{P}$ hermiteano. Logo, $K$ é positivo.

Voltando à eq.(730), sua solução é

\begin{displaymath}
\chi(\vec{R})=Ae^{i\vec{k}.\vec{R}}
\end{displaymath} (731)

com $\vert\vec{k}\vert^2 = \frac{2M}{\hbar^2}K$. Conclui-se que o centro-de-massa move-se como uma partícula livre em estado de momento bem definido. Existe, portanto, um sistema de referência inercial em que o centro-de-massa está em repouso.

Para $\phi(\vec{r})$ temos agora a equação

\begin{displaymath}
-\frac{\hbar^2}{2\mu}\frac{1}{\phi(\vec{r})}\vec{\nabla}^2_{\vec{r}}\phi(\vec{r})
+V(\vert\vec{r}\vert)-E = -K
\end{displaymath} (732)

ou
\begin{displaymath}
-\frac{\hbar^2}{2\mu}\vec{\nabla}_{\vec{r}}\phi(\vec{r})+V(\vert\vec{r}\vert)\phi(\vec{r})
=(E-K)\phi(\vec{r})
\end{displaymath} (733)

Desta equação vemos que, àparte o movimento do centro-de-massa, o problema foi reduzido a um problema de uma partícula, de massa $\mu$, que se move sob a ação de um campo que lhe dá uma energia potencial $V(\vert\vec{r}$. A partir de agora basta reproduzir, mutatis mutandis31, a solução anterior para o átomo de hidrogênio.

Vamos agora ao cálculo prometido acima. Tudo está em escrever $\vec{\nabla}_{\vec{r}_{1}}^2$ em termos de $\vec{r}$ e $\vec{R}$, a mesma tarefa devendo ser realizada também para $\vec{\nabla}_{\vec{r}_{2}}^2$. Trabalhando com as componentes ao longo do eixo $x$ já podemos adivinhar a expressão geral. Temos

\begin{displaymath}
\frac{\partial}{\partial x_{1}}=\frac{\partial}{\partial x}+\frac{m_{1}}{M}\frac{\partial}{\partial X}
\end{displaymath}

onde, como é óbvio, $x$ é a componente de $\vec{r}$, e $X$ a componente de $\vec{R}$. Usamos, nesta primeira passagem, a relação

\begin{displaymath}
\frac{\partial}{\partial x_{1}}=\frac{\partial x}{\partial ...
...
\frac{\partial X}{\partial x_{1}}\frac{\partial}{\partial X}
\end{displaymath}

Logo,

\begin{displaymath}
\frac{\partial ^2}{\partial x_{1}^2}=\left(\frac{\partial}{...
...\partial x}+\frac{m_{1}}{M}\frac{\partial}{\partial X}\right)
\end{displaymath}

ou

\begin{displaymath}
\frac{\partial ^2}{\partial x_{1}^2}=\frac{\partial ^2}{\pa...
...artial X}+\frac{m_{1}^2}{M^2}\frac{\partial ^2}{\partial x^2}
\end{displaymath}

com uma expressão análoga para $\frac{\partial ^2}{\partial x_{2}^2}$, que é dada por

\begin{displaymath}
\frac{\partial ^2}{\partial x_{2}^2}=\frac{\partial ^2}{\pa...
...artial X}+\frac{m_{2}^2}{M^2}\frac{\partial ^2}{\partial x^2}
\end{displaymath}

Portanto,

\begin{displaymath}
\frac{1}{m_{1}}\frac{\partial ^2}{\partial x_{1}^2}+\frac{1...
...}{\partial x^2}+\frac{1}{M}
\frac{\partial ^2}{\partial X^2}
\end{displaymath}

que, somada às contribuições análogas das outras componentes, dá o resultado utilizado acima.

Exercícios

1. Calcule o raio médio ( $\langle r\rangle$) do ``átomo de hidrogênio muônico'', em que o elétron foi substituído por um $\mu_{-}$, uma partícula que tem as mesma propriedades eletromagnéticas que o elétron, a não ser a massa, que é 480 vezes a massa do elétron.
2. Calcule o espectro, raio médio, e tudo que lhe ocorrer, do positrônio, um ``átomo'' formado por um positron e um elétron. O pósitron tem a mesma massa que o elétron, e a carga igual à do proton. Despreze o fenômeno de aniquilação partícula-anti-partícula.
Henrique Fleming 2003